Barrados em cotas, candidatos com autismo acionam a Justiça para garantir vagas PCD de concursos
06/09/2025
(Foto: Reprodução) Candidatos autistas acionam a Justiça para garantir vagas PCD de cotas em concursos
Candidatos de concursos públicos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA) de nível um — o mais leve em uma escala de três — acionaram a Justiça contra bancas organizadoras após serem impedidos de disputar vagas reservadas a Pessoas com Deficiência (PCD).
Os candidatos que concorrem às vagas reservadas precisam passar por uma avaliação biopsicossocial, procedimento que analisa a condição da pessoa com deficiência.
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Os critérios, no entanto, são definidos pelas próprias bancas e podem variar conforme o edital ou órgão responsável pelo concurso. (veja abaixo como funciona)
Em casos relatados ao g1, alguns candidatos foram recusados já na inscrição, enquanto outros foram excluídos apenas na fase final da análise.
Embora o autismo seja reconhecido como deficiência no Brasil desde 2012, pela chamada Lei Berenice Piana, especialistas apontam que a principal fonte de insegurança para os candidatos é que não há uma diretriz nacional para a análise dos candidatos a vagas reservadas.
Em outras palavras, a falta de uma padronização faz com que candidatos autistas nem sempre sejam aceitos como PCD.
Desde 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência determina que as avaliações considerem não apenas o diagnóstico médico, mas também barreiras sociais, de comunicação e de acessibilidade, a fim de evitar fraudes em políticas públicas.
Mas, segundo os especialistas, há uma necessidade de capacitação das comissões avaliadoras, de padronização dos editais e da criação de um observatório nacional para reunir dados sobre o ingresso e a permanência de PCD no serviço público.
Desenquadramento de autistas
Dois candidatos do concurso do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) relataram ao g1 que foram aprovados para concorrer às oportunidades PCD, mas foram desenquadrados posteriormente.
Leandro Teixeira Alves de Toledo, 37 anos, e Dario Oliveira Faria de Machado, 38, se inscreveram como cotistas para o cargo de escrevente técnico. Leandro pediu tempo adicional na prova de digitação, enquanto Dario não solicitou nenhum recurso especial.
Ambos tiveram a inscrição aceita para vagas reservadas, mas foram excluídos na etapa de avaliação biopsicossocial e perícia médica — mesmo apresentando laudos e diagnósticos emitidos por especialistas.
Dario relata que as avaliações se limitaram a perguntas superficiais: “Médicos que nem são especialistas na área estão nos desenquadrando em uma perícia de 10 a 15 minutos”.
“Eles insistem que o nível um de suporte não traz barreiras suficientes para concorrer como PCD, mas isso não faz sentido. Como é possível, em apenas 10 minutos de conversa, tirarem essa conclusão?”, afirma.
Leandro diz que passou por três etapas presenciais, com médico, assistente social e psicóloga. Segundo ele, foram entrevistas rápidas e com erros formais nos relatórios, como troca de gênero e frases copiadas. O participante chegou a entrar com recurso administrativo, mas foi novamente reprovado.
Mais tarde, conseguiu uma liminar que o recolocou na lista de PCD, mas ainda aguarda os próximos passos. “É um processo muito desgastante. Parece que querem cansar a gente para desistir, em vez de garantir o direito que a lei já prevê para pessoas com deficiência.”
Procurado pelo g1, o TJSP informou que a avaliação é feita por equipe multiprofissional, e que o diagnóstico de TEA não garante automaticamente o enquadramento como pessoa com deficiência.(veja abaixo a nota completa)
Dario Oliveira e Leandro Teixeira foram aprovados para concorrer às oportunidades PCD no concurso do TJSP, mas depois foram desenquadrados posteriormente.
Arquivo Pessoal
Em outros casos, candidatos com autismo relatam que tiveram o diagnóstico desconsiderado já na inscrição. Adriana Rodrigues Ferraz, de 55 anos, foi diagnosticada com TEA nível um há cerca de três anos, e tem dificuldades de concentração, memória e ansiedade, agravados por barulho e desorganização do ambiente.
Para realizar as provas, ela precisa de adaptações como sala individual e mais tempo de prova.
No início deste ano, ela prestou o concurso do Superior Tribunal Militar (STM) para o cargo de analista judiciário, mas teve a inscrição como PCD negada, sem direito ao atendimento especial. Assim, ela fez a prova junto com outros participantes e concorreu às oportunidades de ampla concorrência.
“Eu fiz 80 pontos em uma prova dificílima, mas não consegui fazer uma boa redação. Como jornalista, escrever é a minha vida, mas na hora da prova a ansiedade, o barulho e o cansaço mental me bloquearam”, conta.
Em nota, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe), responsável pelo concurso do STM, disse que todos os candidatos que cumprem os requisitos têm a solicitação deferida para concorrer às vagas reservadas.
Judicialização trouxe solução
Em casos assim, recorrer à Justiça pode mudar o curso da carreira desses candidatos.
Leslei Simões Castilho, de 38 anos, prestou concurso da Petrobras em 2022 para o cargo de técnico em química. Diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 1, ela foi eliminada na avaliação biopsicossocial sob o argumento de que seria “independente para a vida”.
“Isso me deixou muito chocada, porque eu faço terapia cognitiva e comportamental, tomo remédios controlados e sigo um tratamento rígido justamente para ter qualidade de vida e ser o mais independente possível”, afirmou.
A candidata recorreu administrativamente e teve o pedido aceito. Em novembro de 2024, foi nomeada e iniciou o trabalho na estatal.
Adriana Rodrigues Ferraz teve a inscrição como PCD negada, enquanto Leslei Simões Castilho recorrer administrativamente para assumir o cargo público.
Arquivo Pessoal
Para Antônio Pedro da Silveira Dutra Bandeira, de 25 anos, o recurso não foi suficiente. Ele foi aprovado no concurso para Analista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo do Distrito Federal, mas acabou excluído da lista de pessoas com deficiência após a avaliação biopsicossocial.
O indeferimento considerou que, apesar do diagnóstico confirmado de Transtorno do Espectro Autista (TEA), ele não apresentaria “prejuízo significativo” nas relações sociais ou intelectuais. Ele passou a disputar pela ampla concorrência e caiu da 34ª posição para a 3.147ª colocação no certame.
Seu recurso administrativo foi negado, então ele acionou a Justiça. “Para mim foi muito estranho receber esse indeferimento, porque apresentei todos os documentos certinhos. Eu me senti injustiçado, parecia que bastava ter conseguido conversar bem na entrevista para concluírem que eu não era autista”, contou Antônio.
Uma perícia judicial independente apontou que o candidato apresenta prejuízos na comunicação, padrões restritivos de comportamento e dificuldades de interação social, confirmando o enquadramento legal como pessoa com deficiência.
O Tribunal de Justiça do DF manteve a decisão favorável e determinou a reinclusão de Antônio nas cotas — o que faria com que ele fosse empossado no cargo. Até agora, o governo local e a banca não cumpriram integralmente a sentença.
Em nota, o Instituto Americano de Desenvolvimento (IADES) afirma que segue a legislação e os editais, garantindo igualdade entre candidatos. Destaca que não comenta processos judiciais, mas cumpre todas as decisões, e reforça seu compromisso com a condução transparente e técnica dos concursos.
O g1 procurou o governo do Distrito Federal, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Quais soluções para as avaliações de PCD em concursos públicos?
A secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Anna Paula Feminella, admite que os casos em concursos públicos são semelhantes aos relatados em universidades federais, como mostrou reportagem do g1.
“Existem entraves na avaliação biopsicossocial realizada pelas bancas, o que tem provocado debates e ações judiciais”, afirmou. Segundo ela, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) já capacitou mais de 1 mil servidores e está desenvolvendo um sistema digital para centralizar as informações das bancas.
“A ideia é que, uma vez feita a avaliação biopsicossocial, a pessoa com deficiência não precise refazê-la a cada serviço ou política pública que solicitar”, explicou.
Ela conta que um grupo de trabalho estuda padronizar as avaliações por meio do Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBrM) — metodologia baseada em diretrizes da Organização Mundial da Saúde que busca medir não apenas aspectos clínicos, mas também barreiras sociais, ambientais e de comunicação, já usado no Instituto de Seguridade Social, o INSS.
Para Liliane Brum, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e pesquisadora da Coordenação de Saúde e Cultura (Cosau) da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, a solução demanda medidas estruturais.
Ela defende que o país avance justamente na regulamentação nacional da avaliação biopsicossocial da deficiência, com um sistema unificado e protocolo único, conforme previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Liliane lembra que o prazo definido pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) para concluir esse processo expirou em 2018 e, desde então, faltam padronização e clareza normativa. “É necessário investir em formação e capacitação, de forma que as decisões sejam técnicas, fundamentadas e menos sujeitas a contestações judiciais”, diz.
“A redução dos conflitos depende, portanto, de harmonização normativa, instrumentos técnicos claros e bancas capacitadas. Só assim será possível ter uma política de cotas que seja inclusiva, juridicamente segura e compatível com o modelo biopsicossocial.”
Embora muitos candidatos consigam reverter decisões negativas por meio de recursos administrativos ou judiciais, a advogada Camila Haddad ressalta que o ideal seria criar um banco de peritos especializados para assegurar avaliações mais justas.
Além disso, a presença de pessoas com autismo em cargos públicos — como juízes ou delegados — pode contribuir para quebrar estigmas e ampliar a representatividade.
Por que pessoas com autismo são incluídas nas cotas
O Brasil tem, ao todo, 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com autismo, segundo o IBGE. Desde 2012, com a Lei Berenice Piana, essas pessoas passaram a ter os mesmos direitos assegurados às pessoas com deficiência.
No caso das cotas, o laudo médico por si só não garante uma vaga. O Estatuto da Pessoa com Deficiência estabeleceu a avaliação biopsicossocial para todas as deficiências — não apenas em concursos, mas também no ensino superior, no INSS e em outras políticas públicas.
🔎 A avaliação é realizada por meio de entrevista (presencial ou on-line) com médicos, psicólogos e especialistas, que identificam barreiras nos âmbitos biológico, psicológico e social que justifiquem o acesso às cotas.
Segundo a pesquisadora Liliane Bernardes, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a avaliação vai além do diagnóstico médico tradicional, ao considerar fatores como acessibilidade, barreiras atitudinais e situações de preconceito.
“Sem considerar esse conjunto de fatores, corre-se o risco de reconhecer como pessoa com deficiência apenas quem apresenta perdas visíveis, ignorando que a deficiência resulta da interação entre impedimentos e barreiras”, afirma.
Na prática, especialistas observam que uma das justificativas mais comuns para desclassificação em bancas é a suposta ausência de “prejuízo significativo” ou a “autonomia excessiva”, como saber dirigir ou ter boa aparência, o que revela estereótipos sobre o autismo.
“As bancas ainda esperam que o autista seja alguém sem autonomia, não verbal e altamente dependente de suporte. Esse imaginário popular ignora completamente a diversidade dentro do espectro”, explica Camila Haddad, especialista em concursos públicos do escritório Fauth & Freitas.
A professora Patrícia Beltrão, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, acrescenta que a inclusão de pessoas autistas nas cotas não se limita a uma dificuldade isolada, mas considera o conjunto de fatores que comprometem a vida cotidiana.
“Todos nós podemos apresentar alguns traços, mas o diagnóstico só se confirma quando essas características comprometem as atividades do dia a dia em mais de 90% do tempo”, explica.
O que dizem as bancas
Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe )
"O Cebraspe informa que todos os candidatos que, no processo de inscrição, se declaram pessoa com deficiência e cumprem os procedimentos – envio de documentação descrita no edital, dentro do prazo estabelecido – têm suas solicitações deferidas para concorrer nesta reserva de vagas."
Fundação Vunesp
“A Fundação Vunesp informa, em relação à afirmação do candidato de que sua inscrição inicialmente foi aceita como pessoa com deficiência (PCD), reportando-se apenas ao dado da solicitação que consta de seu preenchimento da ficha de inscrição, que neste momento nenhuma análise quanto à condição de pessoa com deficiência é realizada. Conforme as normas editalícias, o que se verifica, exclusivamente, é o cumprimento das formalidades previstas, ou seja, se toda a documentação exigida foi devidamente encaminhada. Em fase subsequente, a perícia biopsicossocial é realizada pelo Tribunal de Justiça/SP, que define se a solicitação do candidato é deferida ou indeferida”.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP)
“O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em atenção à consulta formulada, esclarece os procedimentos adotados para a avaliação e o enquadramento de candidatos como pessoas com deficiência (PCD) nos concursos públicos da instituição.
1. PREVISÃO EM EDITAL
Nos termos do edital do Concurso de Ingresso na Carreira de Escrevente Técnico Judiciário, os candidatos que desejarem concorrer às vagas reservadas a pessoas com deficiência devem, no ato da inscrição, declarar sua condição e apresentar laudo médico emitido nos últimos 12 meses, contendo descrição do tipo e grau da deficiência, bem como a correspondente Classificação Internacional de Doenças (CID).
Após aprovação nas provas, os candidatos são convocados para avaliação biopsicossocial, conduzida por equipe multiprofissional, que poderá requisitar exames complementares, se necessários.
Caso o candidato não seja enquadrado como pessoa com deficiência, poderá interpor recurso administrativo, ocasião em que será avaliado por Junta Médica composta por três médicos peritos, sendo um especialista na área da deficiência declarada. Contra essa decisão não cabe novo recurso, esgotando-se as vias administrativas.
Informamos ainda que todas as convocações para perícias, junta médica e divulgação dos resultados das perícias foram feitos por publicação no Diário de Justiça do Estado nos termos previsto no Edital.
2. CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO
A avaliação é pautada no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015 – mencionada no edital), que define como pessoa com deficiência aquela que apresenta impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com barreiras, possa obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Além do Estatuto, também são observados o Decreto Federal nº 3.298/1999, que dispõe sobre a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, e a Lei nº 12.764/2012 (Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista).
3. AVALIAÇÃO DE CANDIDATOS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)
O Tribunal ressalta que o §2º do artigo 1º da Lei nº 12.764/2012 reconhece a pessoa com TEA como pessoa com deficiência para todos os efeitos legais.
Contudo, conforme o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a caracterização da condição exige análise concreta da existência de impedimentos de longo prazo que efetivamente restrinjam a participação plena do indivíduo na sociedade.
Nesse sentido, a apresentação de diagnóstico de TEA não implica, automaticamente, o enquadramento como PCD. A avaliação multidisciplinar verifica, de forma individualizada, se o candidato apresenta limitações que configuram deficiência nos termos da legislação vigente.
4. PROCEDIMENTOS TÉCNICOS
As avaliações realizadas no âmbito do TJSP seguem protocolos científicos atualizados, incluindo os critérios do DSM-5-TR (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria em 2022, de modo a assegurar rigor técnico, evitar diagnósticos equivocados e garantir uniformidade de critérios.
Segundo o Manual, para que o indivíduo possa ser encaixado num quadro de autismo, mister que se encaixe em todas as “subcaracterísticas” do domínio de dificuldade de comunicação social. Tal alteração, em realidade, busca, por meio da adoção de critérios mais conservadores, evitar um “sobrediagnóstico” do autismo.
A equipe multiprofissional é composta por médico, psicólogo e assistente social, todos credenciados por edital público, tendo que atender a certos requisitos, tais como: possuir diploma de curso superior na respectiva área de atuação, ter registro regular perante do Conselho Profissional e comprovar 3 (três) anos de experiência profissional, sendo que, no caso específico dos médicos é exigida residência médica ou título de especialização.
O trabalho dos peritos é conduzido com autonomia técnica, assegurando avaliações fundamentadas, imparciais e alinhadas às melhores práticas.
5. COMPROMISSO INSTITUCIONAL
O Tribunal de Justiça de São Paulo reafirma seu compromisso com a inclusão, a legalidade e a transparência em seus concursos públicos.
O modelo de avaliação adotado busca conciliar o respeito aos direitos das pessoas com deficiência com a necessária observância dos critérios técnicos e legais, assegurando igualdade de condições a todos os candidatos”.
Instituto Americano de Desenvolvimento (IADES)
“O IADES informa que atua em estrita observância às normas estabelecidas nos editais dos concursos que organiza, bem como à legislação vigente, assegurando tratamento isonômico a todos os candidatos.
Quanto ao caso mencionado, o Instituto esclarece que não se manifesta sobre processos judiciais em curso ou já decididos, por se tratarem de matérias de competência do Poder Judiciário. Ressaltamos, contudo, que todas as determinações judiciais são rigorosamente cumpridas.
Reiteramos nosso compromisso com a condução transparente e técnica de todos os certames sob nossa responsabilidade”.
Governo do Distrito Federal
Não respondeu até a publicação desta reportagem.
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